domingo, 9 de outubro de 2011

Há risco para a língua?

A maior parte dos linguistas torce o nariz quando o assunto é regulamentar ou normatizar a língua. Segundo eles, a língua é dinâmica e empréstimos feitos de outro idioma ou acabam sendo assimilados ou simplesmente deixam de ser utilizados com o tempo. Nesta entrevista para a revista Com Ciência, o lingüista e professor visitante da Universidade do Mississipi (EUA), Mário Perini, explica como funciona esse processo. Perini escreveu recentemente um artigo para a Ciência Hoje sobre o assunto.

Outro assunto abordado é o eventual desaparecimento de certas línguas no futuro, devido ao processo de globalização. Ele rebate principalmente as declarações do lingüista Steve Fischer, que previu que línguas mais difundidas como o espanhol e o inglês se tornariam as únicas no mundo. "As declarações do Steven Fisher são muito pouco fundamentadas no conhecimento lingüístico atual", afirma Perini.
 
No artigo que o senhor escreveu para a revista Ciência Hoje, o senhor afirma que a maioria dos empréstimos estrangeiros desaparece, e os que ficam são assimilados. Como se dá esse processo que leva à inclusão de alguns termos no léxico e ao desuso de outros? E no caso da inclusão, que tipo de transformação ocorre antes de um termo estrangeiro ser incorporado no léxico da nossa língua?

Mário Perini - O processo de assimilação de certos itens e eliminação de outros é complexo. Primeiro, certos empréstimos desaparecem porque a coisa que designam cai de moda ou se torna obsoleta. Exemplos são ban-lon; boogie-woogie; mi-mollet; lansquenete e muitos outros que você provavelmente nem conhece. Outros empréstimos são substituídos por formações vernáculas: goal-keeper hoje é goleiro; corner é escanteio; off-side é impedimento etc. Ainda outros ficam, mas são graficamente assimilados, de maneira que nem se sabe que são estrangeiros: gol (goal); nocaute (knock-out); batom (bâton); marrom (marron) e muitos outros. Esses três processos dão conta da grande maioria dos termos estrangeiros. Fica uma quarta categoria, que não se assimila graficamente (embora assuma sempre pronúncia portuguesa): impeachment; site; off (desconto), nylon, etc. São esses últimos os verdadeiramente irritantes. A maioria é muito recente, e não se sabe se vão acabar sendo assimilados ou eliminados de uma maneira ou de outra. Alguns deles persistem porque não têm equivalente em português: não se falava de site, e-mail, marketing até que as coisas propriamente ditas entraram na nossa conversa. Alguns, bem ou mal, já se assimilaram: salvar (alguma coisa no computador); deletar; e o próprio computador (em italiano ainda se diz computer).

O senhor também critica as previsões de Steven Fisher de que as línguas mais difundidas, como o inglês e o espanhol, se tornariam as únicas do mundo em algum tempo. O seu argumento é que estamos longe de uma situação de submissão política e cultural que leve ao predomínio de outra língua sobre o português no Brasil. O senhor não acha que há uma crescente dominação da cultura e da economia norte-americana em todo o mundo, através da música, do cinema e da indústria do entretenimento, no âmbito cultural, e das multinacionais, no âmbito econômico?
Perini 

As declarações do Steven Fisher são muito pouco fundamentadas no conhecimento lingüístico atual. Línguas não "se misturam", como ele disse. E, quanto ao português se misturar com o espanhol, não há o menor sintoma disso. A influência que sofremos hoje é do inglês, antes de tudo; um pouquinho do italiano e do francês. Do espanhol praticamente nada. Em segundo lugar, o desaparecimento de uma língua em favor de outra é um processo de muitos séculos; falar da substituição do português por outra língua qualquer no Brasil é se apressar muito. Vou dar um exemplo: na Irlanda a influência inglesa é predominante desde a Idade Média. Por volta de 1600, metade da Irlanda pertencia a donos ingleses, e toda a ilha era uma colônia britânica. Além disso, o irlandês é uma língua dividida em dialetos, e sem prestígio, quase sem literatura nos tempos modernos, e chegou a ser falada por cerca de 3 milhões de pessoas no máximo. O inglês está ali do lado, a 50 km, e é a língua mais difundida do mundo. Apesar disso, o irlandês resistiu até hoje. 

É verdade que está morrendo, mas agüentou uns bons 600 anos, nessas condições extremamente desfavoráveis. Agora, dizer que o português está indo no mesmo caminho é meio prematuro. O português sempre foi a língua de povos culturalmente dominados, e nem por isso desapareceu. A influência norte-americana é predominante há cerca de 60 anos. Mas não há sinal nenhum de que a população brasileira, ou parte dela, esteja abandonando o português como língua nativa. O domínio cultural dos EUA, pra não falar do econômico e político, é um fato, mas até agora sem conseqüências drásticas no campo lingüístico.

O senhor afirma que tanto a linguagem falada quanto a linguagem escrita evoluem com o tempo e se influenciam mutuamente. O senhor não acha que a modalidade escrita da língua pode ser padronizada por mecanismos legais, como se fez na França? E no caso do português brasileiro, o que o senhor acha do projeto de lei do deputado Aldo Rebelo, que restringe o uso de estrangeirismos?
Perini 

Sobre a padronização da língua escrita através de leis, eu acredito muito mais em uma campanha junto à imprensa. Numa coisa eu concordo com o Aldo Rebelo: essa invasão de termos ingleses é irritante. É como se me jogassem na cara a todo momento que minha cultura é inferior. Minha cultura, note, não a minha língua. O Brasil é um país subalterno de todo ponto de vista. Agora até no futebol! Nosso governo é um simples gerente a serviço do FMI, nossa tecnologia é importada, nossa elite manda os filhos para estudar no estrangeiro, os programas culturais da nossa TV são predominantemente importados, a maioria dos livros que se lêem são traduções, etc, etc, etc. A língua só vai atrás, pois tem que exprimir tudo isso. Resolver o problema dos empréstimos, por lei ou não, é como dar um analgésico para um paciente que, vai ver, sofre de um tumor no cérebro. 

Resolve na hora, mas não ataca a raiz do problema, que, tenho que repetir, é econômico, político, cultural, e não lingüístico. Não quero dizer que não se deva fazer nada, mas uma lei não tem o poder de fazer isso. Vai ser apenas mais uma fonte de multas. Quem sabe uma campanha intensiva e honesta, tentando motivar a população a dar mais valor a sua língua e a sua cultura, sua música, sua arte? Quem sabe até a sua economia? As leis, no Brasil mais do que em muitos outros países, freqüentemente funcionam para atrapalhar. Os governantes não sabem disso, e têm a ilusão de que com uma nova lei vão resolver alguma coisa. Mas nós, o povo, sabemos que não é assim. Senão, o Brasil seria quase o paraíso, porque nossas leis até que são boas.

Mas mesmo que o projeto não seja aprovado, o senhor não acha que ele já contribuiu por colocar a língua e seu destino em discussão?
Perini 

O projeto do Aldo Rebelo, como eu já disse, não vai ter utilidade nenhuma como lei. Mas concordo que serve para chamar a atenção para o problema. E concordo que é um problema, ou para ser mais exato, é parte de um grande problema.


_________. Há risco para a língua?. Com ciência. Disponível em: http://www.comciencia.br/entrevistas/marioperini.htm. Acesso em: 03/10/2011.

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