domingo, 6 de maio de 2012

Língua: código, expressão ou interação?

Se o dilema "espelhamento ou construção" na relação entre linguagem e realidade social estimulou debates por décadas, o que dizer da relação entre a visão de mundo do professor e o ensino?


Muito já se tem dito sobre o fato de que toda prática pedagógica está sempre baseada em algum posicionamento político-ideológico. O ensino de língua portuguesa não foge à regra, tendo, nesse caso, a raiz de tal posicionamento construída a partir da concepção de língua que o/a professor/a vai adotar. Você já parou para pensar nisso? 

A edificação das principais teorias que conhecemos hoje sobre a língua se deve a uma série de esforços teóricos que surgiram no rastro de vários estudos desenvolvidos durante o século XX. Podemos resumir tais estudos em três macro concepções que orientam a linguística contemporânea e, consequentemente, o ensino de língua. Vamos conhecê-las. 

Por ordem cronológica, as seguintes concepções vêm se apresentando como hegemônicas nas diversas investigações científicas com a linguagem.

1. Língua como expressão do pensamento
Nessa concepção, a língua é produzida mentalmente de maneira individual, intrínseca e sob a organização lógica do raciocínio. As atividades de linguagem se realizam nessa perspectiva independentemente das circunstâncias situacionais, sócio-históricas, culturais e políticas em que ocorrem.

2. Língua como um instrumento de comunicação
Opondo-se à primeira concepção, esta segunda visão sobre a língua a entende como um conjunto de códigos autônomos e externos ao indivíduo, motivados socialmente, que serve essencialmente para a troca de informações (comunicação). Entretanto, seu funcionamento também independe do contexto de realização.

3. Língua como interação social
Já esta terceira concepção compreende a língua como uma atividade social não somente usada para comunicar, mas também para realizar ações através da interação social e cognitiva entre os falantes. Esta visão leva em conta as situações de interlocução nas quais a língua se realiza e a influência de fatores de diversas ordens no curso dessas situações.

Mas de que maneira podemos perceber a intervenção dessas três concepções no ensino de língua portuguesa? Até que ponto o modo como o/a educador/a concebe a linguagem influenciará na forma de educar?

Visão de mundo e educação
Vejamos. Em um de seus memoráveis livros, O texto na sala de aula, o professor da Unicamp João Wanderley Geraldi apresenta a diferença entre ensinar uma língua e ensinar metalinguagem. Nele, o mestre Geraldi defende que a postura do docente dentro da sala de aula evidencia seu posicionamento político e isso interfere também significativamente nos métodos e conteúdos que escolhe. Em outras palavras, como expomos, isso se refere à ideia de que toda prática pedagógica se articula através de uma opção política. 

Para ele, a forma de enxergar a sociedade influencia diretamente na maneira de ensinar e tudo que a envolve. Há, por exemplo, uma estreita relação entre o baixo nível do desempenho linguístico por estudantes e o conceito de língua difundido na escola. Eis aí a nossa principal questão! Muito do aprendizado de nossos alunos com a linguagem depende da forma como abordamos o uso e a reflexão da língua em sala de aula.

Em linhas gerais, podemos dizer que o efeito do ensino de língua portuguesa variará a depender da maneira que o/a professor/a conduzir político-ideologicamente a sua prática pedagógica, isto é, a depender da escolha de estratégias que vão desde a seleção de conteúdos até o modo de avaliação. E isso tudo, ainda que o/a docente não perceba, está ligado à concepção que ele/ela adotar. Conceber a língua como mecanismo da expressão do pensamento ou código para comunicação recairá no ensino reducionista ou, como chamamos, formalista, mas entender a língua como prática social será o primeiro passo para estudá-la de uma forma mais explanatória e compreendê-la como um processo intersubjetivo, contextualizado, funcional e, portanto, sob uma abordagem funcionalista.

FORMALISMO
Vamos entender um pouco melhor esses dois paradigmas. No primeiro caso - paradigma formalista - a língua é concebida como um fenômeno suficiente em si, independente de qualquer fator externo a ela, já no segundo - paradigma funcionalista- a compreendemos como uma prática interconectada a várias outras da vida social, sem as quais não seria possível se manifestar. Ambos fundamentos agendam suas pesquisas distintamente, caracterizando seu objeto de estudo e instituindo seus objetivos de maneira oposta entre si.

Ao ensino formalista interessa descrever ou mapear a manifestação da linguagem em termos de compreensão dos aspectos imanentes aos textos, desconsiderando a intervenção dos elementos históricos, ideológicos e culturais na organização interna do sistema linguístico. Por exemplo, caso o/a educador/a pretenda discutir a produção de um artigo de opinião em sala de aula, levará em conta apenas a composição desse gênero de texto sob a perspectiva da frase na sua relação fonológica, morfológica e sintática, ou, no máximo, questões relativas ao sentido gerado no interior de uma proposição, a partir do efeito de uso da pontuação ou da manifestação da ambiguidade lexical. Esse estudo não consideraria, por exemplo, o suporte onde o artigo é veiculado (rádio, jornal, internet); a modalidade em que é produzido (oral ou escrita); a identidade do autor (crítico de arte, professor universitário, literato); ou o motivo da produção textual (se responde, complementa ou reforça um outro artigo). Em outros termos, não faria parte dos objetivos de uma aula formalista sobre a produção de artigos de opinião entender as condições de realização do texto, mas apenas a estrutura elementar interna dele (a forma). E no que isso acarretaria para a aprendizagem dos alunos, professor/a?

A maior de todas implicações é a ideia de que os sujeitos da linguagem ocupam o lugar apenas de reprodutor e decodificador de mensagens, os sentidos são pré-estabelecidos à realização verbal e o texto é entendido como um amontoado de sentenças, que possui coerência somente a partir de seus elementos internos, de dentro para fora, sem qualquer referência aos vários contextos em que está inserido (sociocultural e cognitivo, por exemplo). 

FUNCIONALISMO
Por outro lado, o paradigma funcionalista baseia-se em dois pressupostos: o de que a linguagem tem funções externas a si e o de que essas funções influenciam a sua organização interna. No ensino funcionalista, a linguagem deve ser estudada a partir dessa interação com os seus elementos extrínsecos. 

Isso significa que o Funcionalismo tem por objetivo descrever a interface entre os aspectos exteriores que circundam a linguagem e o sistema interno desta, sendo, portanto, um modelo dialético e abrangente de estudos, pois investiga como a forma atua no significado e como as funções externas do sistema linguístico influenciam na forma.

Nesse caso, a identidade e o papel social dos usuários de uma língua são levados em conta ao se analisar um texto, pois, de acordo com o Funcionalismo, ambos interferem na maneira como os próprios usuários lidam com a linguagem. Isso é notório ao analisarmos os vários mecanismos de utilização da linguagem no nosso cotidiano. Um deles, por exemplo, é a marcação da polidez numa conversa. O uso de formas verbais que constroem o grau de polidez é regulado pela relação que os interlocutores mantêm entre si: um indivíduo, na interação com quem mantém relação hierárquica (filho em relação ao pai, aluno em relação ao professor), marca comumente sua fala com elementos que representam polidez (verbos no modo hipotético, ou subjuntivo "eu“ gostaria"” para não demonstrar autoridade; tratamentos honoríficos, como "senhor", "doutor", a fim de nãogerar intimidade; etc.). Esses e outros exemplos prosaicos revelam a interferência constante das condições externas da linguagem na seleção e organização formal dos textos.

Isso quer dizer que se constitui funcionalista qualquer teoria da linguagem que descreve um texto associando as categorias que o compõem internamente - elementos referenciais, lexicais, icônicos, etc. - a aspectos do entorno de sua produção e consumo - cognição social, cultura dos interlocutores, etc.

O que isso quer dizer? Em última instância, precisamos pensar quais os nossos objetivos enquanto educadores/as. Visamos a uma formação humanística, voltada para a formação de uma consciência crítica dos nossos alunos ou queremos apenas que memorizem o necessário para passar no vestibular? Já dizia o pai da linguística, Ferdinand de Saussure: “o ponto de vista muda o objeto”. Não podemos continuar reproduzindo fórmulas pedagógicas ultrapassadas, em que o ensino de Português restringe-se apenas ao ensino descontextualizado e abstrato de gramática, desligando a língua das situações reais de comunicação.

FORMALISMO E FUNCIONALISMO

O formalismo e o funcionalismo são dois paradigmas que orientaram os estudos linguísticos nas últimas décadas. Segue abaixo um quadro comparativo que sumariza pontos-chave das duas perspectivas e nos facilita a compreensão de como ambas as formas de conceber a linguagem marcaram as teorias linguísticas contemporâneas.


*Gabriela de Paiva Gomes Albuquerque e Tiago Lessas José de Almeida são alunos de Letras da UFPE. Iran Ferreira de Melo é professor do Departamento de Letras da UFPE e doutorando em Língua Portuguesa pela USP.


ALBUQUERQUE, Gabriela de Paiva Gomes; ALMEIDA, Tiago José; MELO, Ferreira Iram.  Língua: código, expressão ou interação? Revista Língua. Disponível em: http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/28/artigo210087-2.asp. Acesso em: 06/05/2012.

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